Pessoas com deficiência, guerras e conflitos armados
Pessoas com deficiência já passam por situações corriqueiras que demandam uma boa dose de planejamento no dia-a-dia, como criar uma rota e recorrer ao transporte público para ir ao trabalho
Tudo muda quando nos encontramos em uma situação não planejada, uma emergência. O que fazer quando somos tirados da “zona de conforto” e as limitações se apresentam maiores que em um dia comum, fora do nosso controle?
Quando dito assim, é possível que venha à mente o cenário de um acidente de trânsito ou de trabalho – mais próximos à nossa realidade brasileira, em que, 14,9% das pessoas que sofrem um acidente de trânsito e 2,7% das pessoas que sofrem um acidente de trabalho ficam com sequelas permanentes, segundo a Pesquisa Nacional da Saúde (PNS) 2019 do IBGE -, mas e no caso de uma guerra, um conflito armado ou uma invasão?
Nesse post, a Freedom resgata dados e relatos sobre situações de guerra e conflito armado na perspectiva de pessoas com deficiência. Dessa forma, nele, você ainda vai encontrar um histórico sobre o tema no mundo e um panorama específico sobre o Brasil.
Vamos lá?
Conflitos armados e guerras
Conforme o relatório do Secretário-Geral da ONU, Ban Ki-moon, para a Cúpula Humanitária Mundial, de fevereiro de 2016, “One humanity: shared responsability”, guerras e conflitos armados estão cada vez mais presentes, duradouros e internacionalizados.
Ainda segundo o texto, cerca de um terço das guerras civis envolvem a presença de atores externos, seja direta ou indiretamente apoiando partes envolvidas nos conflitos, tornando-os mais “mortais e prolongados”.
Portanto, o envolvimento de mais atores significa uma pluralidade maior de interesses nos conflitos, tornando diligências de paz mais complexas e difíceis quando se trata de chegar a um denominador comum.
Uma vez que os conflitos acontecem, cada vez mais, também nos centros urbanos, o impacto na vida civil se torna incalculável e os primeiros a sofrerem com a perda de direitos são grupos minoritários com demandas específicas, como as populações de pessoas com deficiência.
Os efeitos das guerras para as populações com deficiência
Segundo o documento do encontro Arria da ONU (encontro informal envolvendo alguns membros do conselho de segurança da organização das nações unidas e eventuais missões de países convidados), publicado em dezembro de 2018, há cerca de 1 bilhão de pessoas com deficiência no mundo, montante que representa 15% da população global.
Em outras palavras, para além da invisibilização sofrida por pessoas com deficiência, é importante reiterar que elas também estão presentes nas populações vítimas de áreas de conflito. Além disso, ainda segundo o relatório, conflitos armados são responsáveis por 16% das causas de deficiências no mundo.
Se imaginar um contexto de guerra é difícil para uma pessoa sem deficiência, para PcDs, a autonomia e inclusão podem se tornar indisponíveis, bem como a reabilitação, no primeiro momento. Por isso é importantíssimo saber que efeitos esse contexto traz às pessoas com deficiência.
Algumas consequências diretas da guerra na vida da PcD são:
- Perda de infraestrutura de acessibilidade
- Escassez de recursos de mobilidade (ex.: cadeira de rodas, andadores, próteses, etc.)
- Dificuldade na evacuação de ambientes fechados e exposição a bombardeios e minas
- Migração forçada
- Interrupção de tratamentos e terapias
- Discriminação pela condição de refugiado em vulnerabilidade
- Novas deficiências físicas
- Deterioração da saúde mental
Além das consequências citadas acima, se faz importante notar que, em campos de refugiados, elas podem se tornar ainda mais limitantes. Fatores como xenofobia, tentativas de travessias ilegais em condições não humanas ou completamente não assistivas.
Relatos de pessoas com deficiência em regiões de conflito
Todos os olhos hoje estão voltados para a Ucrânia, enquanto o país enfrenta uma forte invasão militar por forças russas. No entanto, pouco se fala da condição da população de pessoas com deficiência na guerra.
Segundo relatos do blog Vencer Limites, do Estadão (10/03), e do G1 (13/03), que conversaram respectivamente com as ucranianas Victoria Satsiv e Tanya Miroshnikova (31), muitos idosos e PcDs estão trancados, sem comida, água, luz e sob constante risco.
“Desde o começo do conflito, somos deixados para trás. Ninguém tenta melhorar as condições dos abrigos, ninguém tenta nos salvar, nos tirar daqui, nos ajudar de alguma forma” disse Tanya, que conseguiu fugir de trem de Kamyanske (450km a sudeste da capital Kyiv) para Lviv (551km a oeste de Kyiv) – um percurso de cerca de 920km de distância pela autoestrada -, com sua cadeira de rodas, ao G1, segundo a jornalista Luiza Tenente.
Já segundo o relato de Victoria Satsiv ao jornalista Luiz Alexandre Ventura, do Estadão, no lar de idosos com deficiência “Vida Confortável”, na cidade de Bucha “Não há comida e faz muito frio. Estão sem luz há 12 dias” e as dificuldades não param por aí.
Quanto às dificuldades para resgate, Victoria complementa ainda de forma desesperadora – “É muito difícil resgatar idosos, são necessários quatro jovens. E os soldados russos disparam constantemente”
Diante do cenário desolador é essencial, portanto, entender o que diz a ONU sobre os direitos das populações civis PcDs em conflitos armados.
O que dizem as resoluções da ONU
Conforme relatório do Secretário-Geral do Conselho de Segurança das Nações Unidas, Gerard Quinn, de 21 de Julho de 2021, sobre a resolução 2475 (2019), que versa sobre a proteção de civis com deficiência durante conflitos armados. Os Estados membros devem proteger, assistir e consultar as pessoas com deficiência, no respeito às leis e convenções internacionais de direitos humanos, bem como punir atos criminosos contra essa comunidade com fins de acabar a impunidade.
Isto significa, em outras palavras, que em uma guerra, garantir a agência desse público a rotas de fuga, sinais de alerta inclusivos, atendimento médico e humanitário e participação nas decisões que o afetem é dever de todas as partes envolvidas no conflito. Contudo, nem de perto é o que acontece em conflitos como o da Ucrânia.
Em meio a sirenes de alerta, pessoas com deficiência auditiva não conseguem ouvir os alertas sonoros. Abrigos subterrâneos dificilmente possuem identificação em braile para pessoas com deficiência visual. Há poucas rotas com transporte acessível e ainda há a ameaça de fogo contra civis por militares.
A realidade brasileira para a pessoa com deficiência
Apesar de estar distante de guerras e conflitos entre nações, tanto de proporções mundiais ou regionais, o Brasil não é imune ao conflito armado. Além disso, junto a problemática citada no início do texto, acerca dos acidentes de trânsito e de trabalho, outro problema histórico que o país enfrenta é a violência.
A PNS 2019, indica que 18,3% dos brasileiros com 18 anos ou mais (29,1 milhões de pessoas) sofreram algum tipo de violência nos últimos 12 meses, seja ela física, psicológica ou sexual.
Contudo, essa realidade, quando recortada para a população PcD do país – 17,3 milhões de pessoas (8,4% da população) -, pode ser tão alarmante quanto no geral.
Segundo Atlas da Violência de 2021, elaborado pelo Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) – que utiliza como referência dados da PNS 2013 -, a população PcD sofreu quase um caso de violência por hora no Brasil em 2019 (7,6 mil casos no ano), sendo:
- A maioria deles na própria residência (58,5%)
- A maioria eram mulheres com qualquer tipo de deficiência
- 56,9% das vítimas possuíam alguma deficiência intelectual
Em cidades com forte presença do crime organizado, a realidade é ainda mais dramática. Nas regiões metropolitanas do Rio de Janeiro e Recife, os relatórios anuais de 2021 do instituto Fogo Cruzado registraram respectivamente 4.653 e 1.725 tiroteios. São 13 por dia na capital fluminense e 5 na pernambucana.
Somando apenas as duas cidades, o número de feridos por projéteis é de 1.514 em 2021. Um fato relevante é que o ano de 2021 teve as operações policiais limitadas pelas decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) acerca da ADPF 635.
Números completamente contraditórios com o que preconiza os relatórios e a Convenção de Direitos das Pessoas com Deficiência citados acima. Especialmente para o estado de “paz”.
Conheça exemplos de história de brasileiros com deficiência que inspiram:
“Sucesso e Inspiração! Conheça a historia de Isabella Savaget”
“Pai com deficiência: conheça a historia de Sergio Nardini”
“[História de Sucesso] Hilda de Araújo Domingos”
Quem procurar ou como ajudar?
Diante de uma realidade tão avassaladora, na paz e na guerra, com problemas tão estruturais. A distância do nosso potencial de ação ou resposta imediatos, enquanto sociedade, nos faz experienciar o quão paralisante as limitações são.
No entanto, urge a possibilidade de transformar a limitação em movimento. Em caso de violência contra pessoas com deficiência denuncie através do canal de denúncia Disque 100 (Disque Direitos Humanos).
E, se puder, ajude a evacuação da população PcD ainda na região de conflito na Ucrânia doando através da ONG Fight for Right.
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